segunda-feira, 26 de abril de 2010

Brasília e a música nacional

Interessantíssima entrevista da UOL com Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial:


"Ser criança em Brasília era estar no paraíso", confessa Dinho Ouro Preto

Dinho Ouro Preto
Especial para o UOL
Brasília faz 50 anos agora em Abril. O Renato Russo faria também 50 em Março. As duas datas são importantíssimas pra mim, e estão interligadas.
Eu morei em Brasília em duas épocas distintas da minha vida: a primeira, dos dez aos treze, e a segunda, dos dezesseis aos vinte. Pode parecer pouco, mas tudo o que eu sou hoje deriva, de uma forma ou de outra, desses anos.
O primeiro período, foi minha transição da infância à adolescência, uma época um tanto confusa pra todos nós. Quando se é criança em Brasília se tem a impressão de estar no paraíso. Passávamos o dia na rua jogando bola e andando de skate. Eu ia a pé pra escola e tinha uma sensação de absoluta tranquilidade e segurança. Medo e violência ainda não faziam parte do meu vocabulário. Na minha inocência, a cidade me parecia um lugar perfeito, sem defeitos, no meio do cerrado e longe de qualquer problema.
 Aos dez, eu conheci o Dado Villalobos, que se tornou meu melhor amigo. Aliás, continua sendo. Aos doze, conheço o Herbert Vianna, o Bi Ribeiro e seu irmão, o Pedro. Até hoje, todos estão entre meus melhores amigos. Através deles, eu comecei a ouvir rock. No começo eu ouvia o que eles ouviam, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, entre outros.
Compro meu primeiro disco: Jimi Hendrix tocando Cream. Lembro da correria às lojas quando o Led Zeppelin lançou o Presence. Lembro de quando o Herbert ganhou sua primeira guitarra importada. Juntou um monte de gente embaixo do bloco porque nunca tínhamos visto uma Gibson.
Aos poucos fui me afastando do gosto deles, e, embora ainda tivéssemos muita afinidade musical, fui me interessando por bandas que, pra eles, eram abomináveis, como AC/DC, Kiss e Queen. Lentamente rock ia se tornando a coisa mais importante da minha vida. Eu achava que quanto mais bandas eu conhecesse, mais bacana eu seria. Eu fazia uma competição com meu irmão pra ver quem conseguia completar o alfabeto inteiro com nomes de bandas. E por incrível que pareça conseguíamos.
Brasília, mesmo sendo a capital do país, ainda era uma cidade do interior, provinciana e isolada. O fato de termos conseguido informações musicais assim em Brasília , muito antes da internet, nos anos setenta, em plena ditadura, foi um feito surpreendente, que só foi alcançado por nos interessarmos por música com um furor religioso.
Aos treze eu passei alguns anos fora do país com meus pais e voltei aos dezesseis. Reencontro meus amigos, e os encho de histórias, dos shows que eu tinha visto, só pra saborear sua inveja.
Logo depois da minha volta, a caminho de casa, absolutamente por acaso, eu dou de cara com uma banda tocando numa calçada em frente a uma lanchonete conhecida por envenenar seus clientes.
Os caras pareciam ter descido de uma nave espacial. Cabelos coloridos, roupas rasgadas, coleiras e alfinetes por todo lado. Eu não conseguia entender uma só palavra do que o sujeito cantava; todos os instrumento e a voz estavam ligados em um só amplificador. Mas não importava, eles transpiravam energia, atitude e carisma. A banda era o Aborto Elétrico com o Renato Russo (naquela época ainda Manfredini) nos vocais, e o Fê e o Flavio Lemos na bateria e baixo respectivamente. A partir desse momento, minha vida nunca mais foi a mesma.

Cidade roqueira

Virou uma questão central nas nossas vidas reencontrarmos aquelas pessoas. Percebemos que a cidade inteira, inclusive nosso bloco, estava pichado com um AE. Começamos a prestar atenção em cartazes colados pelos muros até descobrirmos onde seria o próximo show. Finalmente, após uma exaustiva investigação, descobrimos que a apresentação seria num lugar chamado Cafofo. E lá fomos nós, eu, o Dado e o Pedro...
O Cafofo merecia o nome que tinha, era uma lugar de última. Na verdade era um boteco e o show era no porão. Descemos e nos deparamos com umas doze pessoas, todas vestidas a caráter, uma banda tocando, o Aborto Elétrico assistindo, mas o melhor de tudo: garotas. E ainda por cima roqueiras, aliás punks. O porão era um inferno, mas estávamos no lugar certo na hora certa.
É preciso uma pequena explicação: àquela altura Brasília já tava bastante tediosa pra nós adolescentes com hormônios saindo pelas orelhas. Mas, embora nosso interesse e entusiasmo pelos punks fosse óbvio, ninguém nos dirigia a palavra. Ficou claro que aquilo era um clube exclusivo e, para entrar, sabe lá Deus o teríamos que fazer. No entanto, nossa persistência foi intensa, fomos a todos os shows, não importa onde eram, até que lá pelas tantas, não dava mais pra fingir que não estávamos lá. As primeiras pessoas que tiveram piedade o suficiente pra se digerirem a nós foram as meninas, traição suprema, que deve ter enfurecido o povo das bandas. Eu digo bandas porque eram duas; além do Aborto, havia também o Blitz 64. Por meio das meninas, somos convidados depois do show a ir pra uma "quebrada". Não tínhamos a mais remota idéia do que se tratava, mas como a sorte não passa sempre na sua frente, dissemos que sim, e fingimos que sabíamos do que eles estavam falando.
Quebradas nada mais eram do que lugares isolados, ermos, longe de tudo e de todos, a beira do lago, onde paravam o único carro que tinham e colocavam o som no máximo, acendiam os faróis e baseados; bebia-se Sangue de Boi no gargalo e pronto, a festinha tava armada.
Duas coisas fundamentais aconteceram naquela noite. Primeiro, para minha surpresa o Renato se dirigiu a mim. Ele vira e me pergunta, como se fosse a coisa mais normal do mundo, se eu gostava de ler. Respondi que sim ao que se seguiu com uma conversa sobre Kurt Vonnegut, Salinger, Aldous Huxley e até Camus e Dostoievski. Tive que espremer meu cérebro pra acompanhar a verborragia daquele cara, simultaneamente culto e tímido. A segunda coisa fundamental da noite, foi meu primeiro contato mais intenso e íntimo com o punk rock.
Pode parecer pouco, mas as duas coisas somadas, Renato e o punk, fizeram minha vida tomar um rumo inesperado. À noite, eu não disse nada aos meus pais. Eu preferia que eles pensassem que eu estava planejando algo potencialmente destrutivo e que jamais soubessem que eu tinha passado a noite conversando sobre literatura. Entrei em casa mudo com cara de conspirador, não cumprimentei ninguém, e me tranquei no meu quarto. Dormi profundamente, sonhando com o próximo encontro que prometia uma galáxia de novas possibilidades para minha tediosa existência.
Pouco depois, eu comecei a namorar a irmã do Fê e do Flavio, uma menina linda de morrer que, como eu, ainda ouvia as bandas antigas. Mesmo tendo sido apresentado ao punk, eu achava aquilo tudo muito tosco, e me recusava a ser convertido. Eles eram divertidos e tudo, mas, musicalmente pra mim, aquilo era um desastre. Namorando a Helena, além da sorte grande de namorar a menina mais bonita da turma, ganhei o privilégio de poder frequentar os ensaios do Aborto que eram na casa do Fê.
A partir de então, finalmente eu entendi o que o Renato estava dizendo. E, quando isso aconteceu, parecia que o céu tinha aberto, e um raio de luz iluminado meu rosto, e Deus dito... bom, não sei exatamente o quê, mas algo importante. Finalmente eu ouvi rock brasileiro bem escrito. E, mesmo sem ainda estar convencido do valor do punk, instantaneamente virei fã incondicional do Renato, o que continua inalterado até hoje.
Meu fascínio por sua música me levou a me aproximar dele, e finalmente, um dia, a frequentar sua casa. A Helena, minha namorada, já era amiga dele e, por meio dela, tive acesso ao pequeno circulo de amigos mais próximos.
A casa dele era uma casa comum de classe média, uma mãe e uma irmã simpatissíssimas e o pai que parecia não achar tanta graça naquela gente frrequantando seu lar. O quarto do Renato, objeto de nossa peregrinação, era um autêntico santuário. Rock, cinema e livros. Pilhas e mais pilhas de discos e revistas. Passávamos a tarde inteira ouvindo som, lendo sobre o que as bandas aprontavam, e vendo fotos dos palcos, músicos, suas roupas e suas festas. La Hacienda, CBGB's e 100 Club, todos lugares que pareciam cenários, algo quase irreal, bom demais pra ser verdade. Com fotos dos Ramones festejando, do Sid Vicious fora de si e do Ian Curtis em depressão.
O Renato era um leitor ávido e tinha fascínio especial por biografias, principalmente de rock e cinema. Conhecia cada detalhe da vida de atores e músicos. De Bob Dylan ao Clark Gable, ele sabia de tudo: gosto musical, preferência sexual, prato predileto, roupa favorita, enfim tudo. E sabia de pequenas anedotas, histórias de amor, aventuras extraconjugais, brigas em bares e prisões. Frequentávamos juntos mostras de cinema; víamos a nouvelle vague, os expressionistas alemães, e os clássicos italianos. Acho que nunca mais vivi um momento tão intelectualizado quanto esse, aos dezessete anos.
E tudo isso sem falar em política. Embora o regime militar ainda estivesse oficialmente de pé, a impressão era que ele estava em estado terminal e não seria mais uma ameaça para nós. Então, aterrorizávamos nossos pais saindo para a rua com camisetas com a foice e o martelo (mesmo sem levar Marx muito a sério) só pra nos divertirmos à custa da certeza deles que seríamos presos. Naquele momento líamos Bakunin e, por mais inacreditável que pareça, levávamos a anarquia a sério.
As letras do Renato eram ácidas, corrosivas e de uma provocação deliberada. Ele era chamado regularmente ao ministério da Justiça pra prestar esclarecimentos, coisa que ele nunca fez, e no entanto nunca houve uma reação do regime. Suponho que naquele momento o Figueiredo já estava mais preocupado com seus cavalos. De qualquer modo, nós nos sentíamos profundamente subversivos só de ir aos shows. Aquilo parecia uma afronta aos militares, um ato de coragem que um dia seria lembrado nos livros de história.
A adolescência vem com uma dose de arrogância e ingenuidade. Naquela época, o Renato devia ter uns vinte anos e já tinha escrito “Que Pais é Esse”, “Geração Coca Cola”, “Química”, “Tédio”, “Veraneio Vascaína” e “Fátima” - as últimas duas com o Flavio Lemos. Aos poucos, outras pessoas foram percebendo que não se tratava só de um músico talentoso. A turma começou a aumentar, até que em determinado momento não sabíamos mais o nome de todos. Havia uma hierarquia que era estabelecida por ordem de chegada, portanto, o Renato e o Fê, que tinham fundado o Aborto dando início a tudo, tinham o status de líderes. Outros poucos reivindicam importância equivalente, por inveja ou por rivalidade. Mas pra mim, tudo isso era irrelevante. O Renato, aos meus olhos, pairava acima de todos como um guru indiano levitando.
Acho que essa historinha está ficando meio longa, então vou dar uma resumida. O mote do punk era "faça você mesmo", o que era levado ao pé da letra pelos recém chegados e então bandas pipocaram pra todo lado. Todas com nomes engraçadíssimos, como Dado e o Reino Animal, Os Vigaristas de Istambul e o Anti-Ontem. Se você sacudisse uma árvore, caia um guitarrista.
A medida que mais bandas surgiam, eu tenho a impressão que o Renato começava a achar aquilo tudo um lugar comum. Acho que ele queria ser algo a parte. E principalmente ele queria se fazer ouvir e entender, como se ele soubesse que um dia teria a atenção de uma geração inteira. Então, para minha infelicidade numa bela tarde, sem mais nem menos, houve um dia de luto na turma: o Renato sai do Aborto. Ninguém sabia que aquilo era só o fim do começo e que muito mais viria pela frente. Mas isso tudo é outra história.

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