quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Geração Fanta

Certo dia estava eu googlando sobre humberto gessinger x renato russo e acabei achando este texto numa página de discussão no site Pearl Jam Brasil. Achei tão verdade que quis postar aqui. É de janeiro de 2006.

Geração Fanta

Sou do tempo em que "a juventude é uma banda/ numa propaganda de refrigerantesss" era uma crítica. Os versos de Humberto Gessinger eram, no fundo, uma antevisão apocalíptica da transformação do rock’n’roll - e de todas as paixões que há quase 50 anos lhe dão vida e consistência - num jingle. Minha geração, aliás, se identificou com uma das primeiras canções de Renato Russo a ponto de transformá-la num hino anarquista. "Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Nós somos o futuro da nação/ Geração Coca-Cola" era a nossa "Marselhesa". Por isso, não posso reprimir a tristeza ao ver o anúncio de Fanta estrelado pelo Jota Quest.

Na virada de ano, o quinteto mineiro assinou um inédito (em se tratando de rock brasileiro) acordo de patrocínio com a Coca-Cola, dona da marca Fanta. Por cerca de R$ 1,5 milhão, o Jota Quest terá uma turnê nacional bancada pela fábrica de cola, estrelará campanhas publicitárias, terá o logotipo estampado nas latinhas de Fanta. É uma forma honesta de ganhar dinheiro, não há dúvida quanto a isso. Nos anos 80, a grande Blitz serviu de trampolim para uma campanha do Instituto Brasileiro do Café. Nos anos 90, o colossal bardo da sarjeta nova-iorquina, Lou Reed, foi garoto-propaganda do cartão de crédito American Express. Ano passado, o próprio Jota Quest vendeu seu maior sucesso, "Fácil", para um anúncio de TV do Bradesco. O que torna, então, a campanha da Fanta tão melancólica? O simbolismo, meus amigos, o simbolismo.

A música que incluía os versos "a juventude é uma banda/ numa propaganda de refrigerantesss" (Gessinger literalmente dava um gás nos ésses) se chamava "Terra de gigantes" e fazia parte da obra-prima que os Engenheiros do Hawaii lançaram em 1986, "A revolta dos dândis". O título do disco, nunca é demais lembrar, foi tirado de um dos capítulos do livro "O homem revoltado", do filósofo e romancista franco-argelino Albert Camus. Existencialismo nos pampas. Nos sulcos (era o tempo do LP!) do segundo trabalho do trio gaúcho, então formado por Gessinger (voz e baixo), Augusto Licks (guitarra) e Carlos Maltz (bateria), podia-se pescar ainda versos como "eu me sinto um estrangeiro/ Passageiro de algum trem/ que não passa por aqui/ que não passa de ilusão" ("A revolta dos dândis I") ou "eu posso estar completamente enganado/ posso estar correndo pro lado errado/ mas a dúvida é o preço da pureza/ é inútil ter certeza" ("Infinita highway"). Ou aqueles que são os meus favoritos: "Você sabe, o que eu quero dizer não tá escrito nos outdoors/ Por mais que a gente grite/ o silêncio é sempre maior" ("Além dos outdoors").

Aquém dos outdoors, "De volta ao planeta", segundo CD de Rogério Flausino (voz), Marco Túlio (guitarra), Márcio Buzelin (teclados), PJ (baixo) e Paulinho Fonseca (bateria), lançado ano retrasado, soa como uma coletânea de jingles. "7:15 eu acordo/ e começo a lembrar/ do que ainda não me esqueci", filosofa "Sempre assim", a segunda faixa. A oitava, "O vento", fez sucesso com versos como "você passou perto de mim/ sem que eu pudesse entender/ Levou os meus sentidos todos pra você". E a música que abre e dá título ao álbum parece ser o ápice da consciência social do Jota Quest: "Nana Banana Nanananana Banana/ Nana Banana Nanananana Banana/ Que tá faltando emprego no planeta dos macacos".

"Faroeste caboclo", da Legião Urbana, tinha 159 versos, uma saga alegórica no coração do país. Qualquer criança de 5 anos a conhecia de cor e salteado no Brasil de 1987/88. Não posso acreditar que essa mesma garotada tenha crescido e hoje, aos 17, 18 anos, ache transcendental "um dia feliz/ às vezes é muito raro/ falar é complicado/ quero uma canção.../ Fácil, extremamente fácil/ pra você, e eu e todo mundo cantar junto". Não era isso que Cazuza & Frejat tinham em mente quando escreveram "Rock da descerebração". E que não venham brandido números - centenas de milhares - de vendagem. Arte é outro papo. Não acredito no slogan "um milhão de moscas não podem estar erradas: coma cocô". Fernando Collor, por exemplo, foi eleito presidente por 35 milhões.

Aliás, desde que a modernidade brasileira passou a ser encarnada pelos mauricinhos (ou fernandinhos) parte de nossa música, a mais evidente parte dela, passou por um processo grosseiro de pasteurização. Primeiro, na cola de Collor, sertanejos sem cheiro de terra. Depois, na Era FH, pagodeiros sem cheiro de morro e baianos sem cheiro de dendê. Agora, com a queda das vendas desses gêneros, se destaca um rock sem cheiro de garagem. O Jota Quest é formado por bons músicos, a começar pelo vocalista Rogério Flausino, apesar dos seus trejeitos david-coverdalianos. No entanto, nem eles nem seus companheiros menos superexpostos na mídia - grupos como Charlie Brown Jr. e LS Jack - têm nada a dizer. Fazem um rock cuja insipidez é mascarada por uma camada de suingue, rock feito no preciso momento em que a atitude se torna pose. Vendo o Jota Quest cantando Roberto Carlos, Tim Maia e "Happy day" na MTV, aliás, eu me pergunto se se trata mesmo de um grupo de rock ou de uma banda de baile, mais aparentada do Roupa Nova do que dos Paralamas, do Pato Fu ou do Rappa.


Artur Dapieve
(Jonalista do Jornal O Globo)

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